O trabalho de um tradutor em regime freelance é bastante específico, mas também cheio de diversidade. Qualquer tipo de texto poderá ser trabalhado pelo profissional, aquilo que, pessoalmente, considero ser uma das grandes vantagens e motivações do ofício: conhecer uma imensidão de coisas novas, simplesmente pelo facto de trabalharmos na nossa área. É gratificante e ajuda-nos a crescer pessoal e profissionalmente.
No entanto, o trabalho também se caracteriza por uma certa instabilidade. Poderão existir picos de trabalho com muitas horas por dia em certos períodos e muito pouco volume de trabalho noutros momentos. Sendo esta uma situação que se aplica especialmente aos profissionais em início de carreira, será por esta razão que teremos de aceitar todo o trabalho que chegue, independentemente do seu tipo de conteúdo, preço ou prazo? Não creio.
Enquanto profissionais da tradução, temos o direito e, em certa medida, o dever de estabelecer limites. Sem dúvida que o limite mais falado é o do preço, um debate que há muito reina entre a comunidade de tradutores: “Quanto devo cobrar? Se exigir um valor demasiado elevado, estarei a “deixar fugir” trabalho?” É uma discussão que dá “pano para mangas”, mas existem outros tipos de limites.
O debate que gostaria de abrir com este texto diz respeito, de forma generalizada, a variados tipos de limitações que o tradutor freelance pode negociar com o seu cliente. Já passou pela situação de traduzir um trabalho cujo texto lhe levantava questões éticas, por exemplo? Pois bem, antes de decidir se deve ou não aceitar um projeto, talvez valha a pensa considerar algumas das limitações seguintes.
Suponhamos que recebe para traduzir um texto de natureza política ou religiosa com convicções fortemente opostas àquilo em que acredita ou cuja difusão, na sua opinião, é prejudicial à sociedade em que se insere (por exemplo, um ensaio sobre os perigos da imigração e do multiculturalismo). Deve lembrar-se de que é perfeitamente aceitável recusar-se a fazer a tradução, mas não basta simplesmente dizê-lo assim – é aconselhável informar o cliente, de forma ponderada, dos seus motivos, agradecer o envio do trabalho e reforçar que espera ter a oportunidade de voltarem a colaborar em futuros trabalhos. Uma recusa não fundamentada pode ser prejudicial, pois aumenta as hipóteses de o cliente deixar de contar consigo. Ao explicar os seus motivos, particularmente se o cliente for uma empresa de tradução, está até a “ganhar pontos” junto do gestor de projetos pela sua honestidade e integridade.
Ressalvando uma vez mais que um tradutor freelance nem sempre consegue fazer tudo o que recebe, é necessário aprender a dizer “não”. Pode ser frustrante estar dias sem receber nada e passado algum tempo receber um grande volume e ter de recusar trabalho, mas tenha em atenção que não é por dizer “não” uma ou duas vezes que vai ser eliminado da base de dados da empresa. Calcule durante quantas horas por dia está disposto a trabalhar regularmente e entenda que, por vezes, vai ter de ultrapassar esse limite por ocasião do volume de trabalho. No entanto, não faça das horas extra um hábito, porque prejudica a própria qualidade das suas traduções.
Não obstante, tenha em conta que nem sempre uma recusa liminar é a solução. Imagine que pode negociar uma data/hora de entrega diferente com o cliente: não perde nada em perguntar. Enquanto gestor de projetos, já tive a experiência de receber um trabalho do cliente e encaminhá-lo para um recurso externo da minha confiança, que respondeu não lhe ser possível aquela data de entrega, mas sim no dia seguinte. Foi só entrar em contacto com o meu cliente, explicar a situação e este aceitou; no fim, a tradutora da minha preferência acabou por ficar com o projeto.
Este cenário é principalmente aplicado à tradução técnica. Já lhe aconteceu ler um manual de instruções com traduções tão más que a única solução era mesmo ler a versão original? Imagine que esse trabalho foi feito por um tradutor que achou que podia aceitar o trabalho apesar de não ter competências para tal. Uma tradução recusada significa perder aquele trabalho; uma tradução de má qualidade pode fazer com que perca todos os trabalhos do cliente. Leia atentamente os ficheiros e as instruções e pese cuidadosamente os prós e os contras. Se tem vontade de saber mais sobre o domínio, considere as possibilidades de formação (online ou presenciais).
Não sendo este o principal foco do presente artigo, é inevitável referir este ponto. Muita tinta já correu sobre que preços são ou não aceitáveis, ponto que se prende com diversos aspetos como a experiência, a “raridade” do par linguístico, o domínio científico, entre tantos outros. A este respeito, quero apenas referir duas ideias principais que me parecem muito relevantes:
Imaginemos que recebe uma tradução de 10 palavras e todas elas são definições que exigem uma longa pesquisa, contacto com especialistas e diversas outras complicações. É importante estabelecer com o seu cliente um ponto prévio de que existe uma tarifa mínima, particularmente quando lhe é dito que vem aí um trabalho pequeno, mas não tem informações sobre o seu conteúdo. Se o fizer apenas depois de ter dito que se aplica o preço normal por palavra, corre o risco de o cliente se sentir enganado. A tarifa mínima deverá ser o equivalente ao montante que cobraria pela tradução, nos mesmos idiomas, de 250 a 300 palavras.
Estabeleça igualmente uma tarifa de urgência. Tenha em conta os fatores tempo e volume. Por exemplo, uma tradução de 1500 palavras em quatro horas é merecedora desta tarifa. O montante varia e fica ao critério de cada um, embora seja comum falar-se em 25% sobre o total regular. Este artigo (em inglês) fornece mais algumas ideias sobre o assunto.
Nunca é de mais dizer que “tempo é dinheiro”. Quando estamos a traduzir, oferecemos um serviço que nos consome tempo, tempo esse que poderíamos estar a utilizar para estar com família e amigos, viajar, aprender uma nova língua, entre tantas outras coisas. Reflita sobre esta questão: quanto acha que é justo ganhar por cada hora de trabalho? E quantas palavras, em média, traduz por hora? Nesta avaliação, junte todo o dinheiro (e tempo, claro) que investiu na sua formação, nas ferramentas de trabalho (computador, CAT Tools, impressora…) e nos serviços aos quais recorre para levar a cabo o seu trabalho. Não deixe de fora os trabalhos “extra”, como a sua contabilidade pessoal. Calcule quanto ganha realmente por cada hora de trabalho com a sua tarifa atual e decida se a deve alterar. Depois, aconselho-o(a) apenas a tentar compatibilizar a sua tarifa com os preços do mercado.
Este tópico prende-se não só com as CAT Tools, mas também com o tipo de trabalho que nos pode ser pedido. Podemos ser tradutores, mas não fazemos apenas tradução e revisão. Ao longo da nossa carreira, as empresas irão propor-lhe tarefas de QA, transcrição, testing e muitas outras. Se não se sente à vontade para fazer este tipo de coisa, é melhor ser honesto e explicar por que não pode aceitar. No entanto, deixo uma sugestão: considere a possibilidade de se aventurar nestas tarefas menos usuais ou até de investir em formação para que as consiga realizar. Por exemplo, muitas empresas enviam frequentemente trabalhos de beta-testing pagos à hora, um nicho de mercado ainda pouco explorado e com forte potencial de lucratividade. O mesmo se aplica a CAT Tools com as quais não esteja habituado a trabalhar: há uma primeira vez para tudo e o saber não ocupa lugar. Se vir que recebe pedidos frequentes de tradução numa ferramenta que nunca utilizou, está mesmo na altura de começar.
Uma das características que um gestor de projetos mais valoriza num tradutor é a honestidade. Pode nem nos passar pela cabeça, mas é muito frequente um gestor de projetos enviar uma proposta de trabalho ao tradutor sem ler integralmente o texto a traduzir. Muito provavelmente, na lufa-lufa do dia-a-dia, o gestor de projeto receberá o ficheiro do cliente e apenas o lerá na diagonal, pois não disporá do tempo suficiente para avaliar todas estas questões. Se entrar em contacto com o seu cliente e explicar, de forma fundamentada, os motivos pelos quais não se sente à vontade para aceitar o trabalho, o mais provável é que o gestor de projetos agradeça a sua sinceridade, compreenda a recusa e continue a tê-lo como contacto para futuros projetos.